Livro de Erich M. Remarque é uma obra-prima que fala não apenas sobre os horrores da Primeira Guerra Mundial, mas também sobre a desilusão humana com o mundo moderno. É leitura ainda hoje indispensável.
Por Bruno Leal Pastor de Carvalho
O livro “Nada de novo no front”, de Erich M. Remarque, acaba de completar 90 anos. Lançada pela primeira vez em alemão, em janeiro de 1929, a obra (Im Westen nichts Neues, no original) vendeu um milhão de cópias em menos de um ano na Alemanha, e mais outro milhão no exterior. O sucesso foi tanto que o livro foi adaptado para o cinema um ano depois pela Universal Pictures, com um orçamento enorme para a época, um recorde de US$ 40.000. O filme venceu quatro prêmios Oscar na edição de 1931: melhor filme, melhor diretor, melhor fotografia e melhor roteiro.
Desde seu lançamento, “Nada de novo no front” já foi traduzido para 58 línguas e soma mais de 10 milhões de exemplares vendidos. Em escolas localizadas em diferentes partes do mundo, o livro de Remarque é um dos mais utilizados pelos professores de História quando o assunto é o horror da Primeira Guerra Mundial.
O enredo do livro ajuda a explicar o sucesso: “Paul Baumer é filho de uma humilde família alemã durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Convencido por professores quanto ao seu dever patriótico, o jovem abandona os bancos escolares e junta-se às trincheiras de soldados alemães. Em pouco tempo, Paul se vê cercado por um ambiente de horror, vê meninos como ele perecerem e percebe que trocou a sua juventude por uma única e cruel certeza: a do absurdo da guerra, esteja-se do lado que se estiver.
Por que “Nada de novo no Front” é importante?
Há muitos motivos que explicam a importância de “Nada de novo no front”. A principal razão – acredito eu – tem a ver com aquilo que os alemães chamam de Zeitgeist, que em português significa “espírito de um tempo “. O livro de Remarque captura justamente a ambientação dos primeiros anos depois da Primeira Guerra Mundial.
“A Grande Guerra” foi uma guerra que mobilizou, direta ou indiretamente, todos os continentes. Isso jamais tinha acontecido. O conflito também foi inédito quanto às fatalidades: matou pouco mais de 37 milhões de pessoas, entre militares e civis, e deixou outras milhões feridas, desabrigadas e traumatizadas.[1] Foi nela ainda que se usou pela primeira vez gases tóxicos, blindados, minas e aviões. E, embora as metralhadoras automatizadas fossem conhecidas desde o último quarto do século XIX, foi na Primeira Guerra que elas foram popularizadas no campo de batalha.
Em 1918, quando a guerra acabou, as pessoas buscavam desesperadamente entender como algo desta magnitude tinha sido possível no coração de uma Europa que se considerava o centro irradiador da civilização. Afinal de contas, o projeto iluminista de um mundo baseado na cultura e na razão, desenhado um século e meio por filósofos que se tornaram cânones do pensamento filosófico moderno, parecia derrotado depois de uma guerra que usou o conhecimento industrial e científico para fabricar a morte e não o progresso. Quem sobreviveu à Primeira Guerra Mundial estava ávido por respostas: como explicar tudo o que acabara de acontecer. É aí que entra o mérito de Remarque.
“Nada de novo no front” não explica a guerra, mas é uma reflexão provocativa sobre a guerra e a condição humana naquele início do século XX. Indo na direção contrária da exaltação militarista da época, Remarque constrói personagens que são mais vítimas do que heróis. Paul Baumer, o protagonista, assim como muitos outros nomes do livro, era um jovem que foi induzido a pensar que a guerra era um dever patriótico. Instituições como a escola e a família foram fundamentais para o seu alistamento. “Naquela época”, diz o personagem, “até os nossos próprios pais usavam facilmente a palavra covarde”.[2]
Quando Baummer e seus colegas chegaram ao campo de batalha, descobriram que tudo era muito diferente. O livro fala de soldados amputados em minas, angustiados pelo medo, pela privação de sono, pela forma e por “epidemias” de piolho. Nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, os homens de transformavam. Assemelham-se a mortos-vivos: “Lá está nosso companheiro Kemmerich, que até há pouco ainda assava carne de cavalo e se agachava junto conosco nos buracos abertos pelas granadas; ainda é ele, porém já não é mais ele; suas feições ficaram imprecisas, indistintas, como duas fotografias sobrepostas na mesma chapa. Até sua voz soa como se viesse do túmulo”.[3]
Um dos trechos mais impressionantes e assustadores do livro é quando o narrador fala sobre a necessidade da metralhadora trabalhar sem interrupções. Essas máquinas atingiam altas temperaturas depois de algumas rodadas de tiro. Quando isso acontecia, os soldados tinham que jogar água nela para que fosse refrigerada. No campo de batalha, a prioridade era da arma e não dos soldados que a operavam. Quando essa água acabava, era preciso improvisar: “Ouvimos as explosões das granadas que se aproximam. Nossa metralhadora varre o semicírculo avançado. A água de refrigeração evapora; passamos o reservatório vazio de mão em mão, apressadamente, para que todos urinem; assim, arranjamos líquido e podemos continuar a atirar. Mas, atrás de nós, as detonações aproximam-se cada vez mais. Daqui a alguns minutos, estaremos perdidos”.[4]
Desta forma, “Nada de novo no front” é um choque de realidade, um alerta para a sociedade. A guerra não é uma aventura e muito menos uma prova de patriotismo ou mesmo de coragem e masculinidade. Ela também não é uma “diplomacia por outros meios”. A guerra mata mesmo quando se sai vivo dela. Este é o grande recado de Remarque, que, se não é capaz de responder o porquê da guerra (talvez ninguém o possa, de verdade), ofereceu uma reflexão poderosa para uma sociedade ainda paralisada diante do luto de quatro anos de conflito.
Retrato do militarismo e do nacionalismo da época
Outro fator que faz “Nada de novo no front” um livro marcante é a forma como ele desmonta o nacionalismo e o militarismo tão vigentes na época. Entre o final do século XIX e início do século XX, militarismo e nacionalismo eram valores aprendidos cegamente nas escolas europeias. Era comum nesse período, por exemplo, professores incentivarem seus alunos a entoarem canções que exaltavam fuzis e a guerra. Em maio de 1882, o jornal francês L’École, especializado em educação, publicou o canto marcial “Aluno-Soldado”, ensinado da escola maternal ao curso elementar. Ele dizia: “Para ser um homem é preciso saber escrever / E em pequeno, aprender a trabalhar / Pela pátria, uma criança deve instruir-se / E na escola aprender a trabalhar /Soou a hora, marchemos a passo / Jovens crianças, sejamos soldados”.[5]
Remarque soube fazer muito bem a crítica a esse modelo educacional que buscava formar não cidadãos, mas soldados. Um dos personagens de “Nada de novo no front” é Kantorek, o professor ufanista de Paul Baumer. Kantorek, às vésperas do conflito, foi o maior incentivador para que Baumer e outros tantos jovens alunos se alistassem: “Kantorek nos leu tantos discursos nas aulas de ginástica que a nossa turma inteira se dirigiu, sob o seu comando, ao destacamento do bairro e alistou-se. Vejo-o ainda à minha frente, e lembro-me de como o seu olhar cintilava através dos óculos, quando, com a voz embargada, perguntava: “vocês vão todos, não é, companheiros?”.[6]
“Nada de novo no front” é também importante por outros motivos: ele é muito bem escrito, tendo uma narrativa ágil, com ótimos diálogos e personagens demasiadamente humanos – com medos, ansiedades, raiva, dor e apatia. A obra se notabiliza finalmente por servir como um divisor de águas para o movimento pacifista que se estruturaria nos anos seguintes e para o “romance de guerra”, um gênero literário que naquele início do século XX ainda era muito marcado pelo olhar romantizado da guerra e do patriotismo.
O autor, Erich Maria Remarque
Erich Maria Remarque nasceu em 22 de junho de 1898, em Osnabrück, na Alemanha. Depois de concluir os estudos escolares em sua cidade natal, começou a frequentar a Universidade de Münster. A vida acadêmica, no entanto, foi bruscamente interrompida quando, aos 18 anos de idade, ele se juntou ao exército alemão para combater na Primeira Guerra Mundial. Foi ferido três vezes nas trincheiras, uma delas gravemente, mas conseguiu se recuperar.
Depois da guerra, Remarque, assim como muitos outros ex-combatentes, enfrentou uma segunda guerra: pela dignidade. A Alemanha encontrava-se destruída e humilhada. Tinha perdido territórios e precisava pagar reparações de guerra a diversos países. Remarque lutou para sobreviver. “Foi pedreiro, organista, motorista e agente de negócios, até estabilizar-se, mais ou menos, no jornalismo, exercendo funções de crítico teatral e repórter esportivo, entre outras, em alguns jornais de Hannover e Berlim”.[7]
Os traumas da Primeira Guerra Mundial persistiam em não passar. Remarque tinha dificuldades para dormir. Passava noites em claro escrevendo, tentando colocar no papel as memórias dos anos em que passou trincheiras. Na época, o diagnóstico ainda não existia, mas é muito provável que sofresse com neurose de guerra. Os papéis escritos foram se acumulando ao longo dos anos e Remarque percebeu que o material poderia ser publicado como livro. Sua história apareceu primeiro em folhetins do jornal Wossiche Zeitung, em 1928. O relato duro e cruel da guerra fez um enorme sucesso, garantindo a publicação do livro em janeiro de 1929, também com sucesso enorme, e a adaptação para os cinemas em 1930.
A narrativa de Remarque provocou revolta entre setores nacionalistas alemães, sobretudo dos nazistas, que acreditavam que tanto o filme quanto o livro sujavam a memória dos ex-combatentes. Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder, o filme foi proibido e os livros queimados em praça pública. Temendo pela própria segurança, o autor exilou-se na Suíça e, depois, nos Estados Unidos. Em 1938, sua cidadania foi retirada pelo governo alemão, por “ter arrastado na lama” a imagem dos soldados e apresentado uma visão “antigermânica” dos acontecimentos da grande guerra. Cinco anos depois, Remarque sofre uma violenta perda: sua irmã, Elfriede, uma costureira, foi condenada à morte em 1943 e decapitada na Alemanha nazista porque um cliente a denunciara: ela teria dito que poderia dar um tiro na cabeça de Hitler. [8]
Erich Maria Remarque não foi autor de um único livro. Sua carreira de escritor foi produtiva. Ele também é autor de “O caminho sem volta” (1931), “Três camaradas” (1937) , “Náufragos” (1941), “Arco do triunfo” (1946), e “O obelisco preto” (1956), além de um romance póstumo, “Sombras do paraíso”, publicado em 1971.
Nos Estados Unidos, em 1947, Remarque naturalizou-se norte-americano. Viveu romance com as atrizes Marlene Dietrich e Greta Garbo, dentre outras celebridades de Hollywood. Em 1948, voltou para a Europa. Na Suíça, ele viveu com a atriz Paulette Godard, então divorciada de Charlie Chaplin. Faleceu naquele país em 25 de setembro de 1970, em Locarno. Tinha 72 anos e jamais perdoou os nazistas pelo tratamento que lhe dispensaram. Durante uma visita à Alemanha, em 1966, ele disse: “Pelo que sei, nenhum assassino do Terceiro Reich perdeu a sua cidadania alemã”.[9]
Traduções e outros livros
Na Alemanha, “Nada de novo no front” foi lançado pela primeira vez em 29 de janeiro de 1929 pela editora alemã Propyläen Verlag. A primeira versão em língua portuguesa foi publicada no Brasil, em 1951, publicada pela José Olympio e com tradução de José Geraldo Vieira. Três anos depois, em 1954, o livro foi publicado em Portugal pela Editora América, com tradução de Mário de C. Pires. No Brasil, o livro conheceu ainda várias outras edições, como a da Editora Abril, dentro da coleção “Grandes Sucessos”, publicada no início dos anos 1980, e a mais atual, da L&PM Pockets, de 2004.
Para Tereza Faustino de Brito e Janete Santa Maria Ribeiro, um dos maiores legados de “Nada de Novo no Front” é que o livro se tornou uma “fonte histórica” para aqueles que estudam a Primeira Guerra Mundial. Para as autoras, a obra “torna vivo o conflito não apenas baseado nos discursos de historiadores em livro didáticos, mas sim, no testemunho de um participante deste evento bélico, que esteve na frente de batalhas, lugar onde o conflito se concretiza não apenas de forma burocrática, mas onde se manifestam questões pertinentes como a constância da morte, a decepção dos jovens soldados, a violência degenerada que ceifa vidas.” [10]
Notas
[1] Enciclopédia Britânica: https://www.britannica.com/event/World-War-I/Killed-wounded-and-missing
[2] REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. São Paulo: Abril Cultural, 1981. p.15.
[3] Ibidem, p.18.
[4] Ibidem, p.18.
[5] MARTIN, Hervé; BOURDÉ, Guy. As escolas históricas. Lisboa: Editora Europa-América, 2000. p.111.
[6] REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. São Paulo: Abril Cultural, 1981. p.15.
[7] Idem.
[8] REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. São Paulo: L&PM Pockets, 2004.
[9] Idem.
[10] DE BRITO, Tereza Faustino; RIBEIRO, Janete Santa Maria. O uso do romance “Nada de novo no front” como eixo integrador nas aulas de história. Revista Eletrônica Científica Inovação e Tecnologia, v. 1, n. 1, 2017. Disponível aqui.
Referências Bibliográficas
DE BRITO, Tereza Faustino; RIBEIRO, Janete Santa Maria. O uso do romance “Nada de novo no front” como eixo integrador nas aulas de história. Revista Eletrônica Científica Inovação e Tecnologia, v. 1, n. 1, 2017.
MARTIN, Hervé; BOURDÉ, Guy. As escolas históricas. Lisboa: Editora Europa-América, 2000.
REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. São Paulo: L&PM Pockets, 2004.
REMARQUE, Erich Maria. Nada de novo no front. São Paulo: Abril Cultural, 1981
Publicado originalmente em: CAFÉHISTORIA