De onde vieram? Por que fascinavam tanto as pessoas? E qual é a chance de que aconteça de novo?
Julius era um sujeito querido. Sua namorada o amava, seus amigos o consideravam boa-praça, seus colegas de trabalho admiravam sua competência. Aos 29 anos, ele já comandava uma equipe de 550 pessoas. Tinha uma voz boa e, no seu tempo livre, gostava de ir a festas, cantar e dançar.
O nome completo dele era Julius Wohlauf, o comandante da 1ª Companhia do Batalhão 101, o mais sanguinário corpo de extermínio nazista. Seu trabalho, que ele fazia tão bem, era manter a ordem na Polônia ocupada, o que incluía mandar judeus para a morte certa e fuzilar poloneses. Em junho de 1942, ele se casou com Vera em Hamburgo e voltou com ela à Polônia para seguir com a matança. Durante a lua-de-mel, grávida de 4 meses, Vera assistia aos fuzilamentos de dia. À noite, o casal cantava e dançava nas festas do batalhão.
Como é que Julius conciliava a vida pacata em família com a rotina de assassinatos? E não foi só ele. Milhares de cidadãos participaram da matança – os ferroviários que levavam judeus à morte, as donas de casa que delatavam fugitivos, os médicos que faziam experimentos com prisioneiros (veja o quadro nas páginas 42 e 43), os funcionários das diversas indústrias públicas e privadas que compunham a máquina de matar de Hitler. Sem falar nos milhões que assistiram a tudo sem protestar, até com um sentimento de aprovação. Como uma coisa dessas pôde acontecer em pleno século 20, no coração do Ocidente democrático e “civilizado”?
A explicação está numa ideia: o nazismo. Julius, como quase toda a Alemanha, acreditava sincera e profundamente nela. Há 60 anos, quando Hitler se suicidou, o nazismo foi dado também como morto. Por décadas, o mundo olhou para ele como se não passasse de um surto de loucura – um desvario coletivo sem sentido ou explicação. Mas, agora, vários pesquisadores têm tido coragem de procurar alguma lógica nele, inclusive para evitar que se repita. E algumas conclusões estão surgindo.
Segundo elas, o nazismo não é uma ideia louca vinda do nada e sumida para sempre. Ele é consequência de 5 outras ideias – todas aparentemente inofensivas sozinhas, todas vivas até hoje. Esta reportagem procurará entender cada uma delas – para chegar perto de compreender o nazismo.
A 1ª ideia: o carimbo da ciência
Como uma pessoa comum pode conviver com sua consciência após assassinar inocentes? A resposta: fica mais fácil dormir à noite quando se acredita que seus atos trarão o bem à humanidade. Hitler convenceu os alemães – e muitos estrangeiros – de que, após o massacre, nasceria um mundo melhor.
Isso pode soar absurdo hoje, mas era um fato aceito pela ciência da época. “O Holocausto não ocorreu no vácuo. Ele seguiu décadas de crescente aceitação científica à desigualdade entre os homens”, diz o alemão Henry Friedlander, historiador e autor de The Origins of Nazi Genocide (“As Origens do Genocídio Nazista”, sem versão brasileira). Friedlander se refere a um conceito nascido no século 19 nas melhores universidades: a eugenia.
A eugenia surgiu sob o impacto da publicação, em 1859, de um livro que mudaria para sempre o pensamento ocidental: A Origem das Espécies, de Charles Darwin. Darwin mostrou que as espécies não são imutáveis, mas evoluem gradualmente a partir de um antepassado comum à medida que os indivíduos mais aptos vivem mais e deixam mais descendentes. Pela primeira vez, o destino do mundo estava nas mãos da natureza, e não nas de Deus.
Darwin restringiu sua teoria ao mundo natural, mas outros pensadores a adaptaram – de um jeito meio torto – às sociedades humanas (veja o quadro desta página e da anterior). O mais destacado entre eles foi o matemático inglês Francis Galton, primo de Darwin. Em 1865, ele postulou que a hereditariedade transmitia características mentais – o que faz sentido. Mas algumas ideias de Galton eram bem mais esquisitas. Por exemplo, ele dizia que, se os membros das melhores famílias se casassem com parceiros escolhidos, poderiam gerar uma raça de homens mais capazes. A partir das palavras gregas para “bem” e “nascer”, Galton criou o termo “eugenia” para batizar essa nova teoria.
Galton se inspirou nas obras então recém-descobertas de Gregor Mendel, um monge checo morto 12 anos antes que passaria à história como fundador da genética. Ao cruzar pés de ervilhas, Mendel havia identificado características que governavam a reprodução, chamando-as de dominantes e recessivas. Quando ervilhas de casca enrugada cruzam com as de casca lisa, o descendente tende a ter casca enrugada, pois esse gene é dominante.
Os eugenistas viram na genética o argumento para justificar seu racismo. Eles interpretaram as experiências de Mendel assim: casca enrugada é uma “degeneração” (hoje sabe-se que estavam errados – tratava-se apenas de uma variação genética, algo ótimo para a sobrevivência). Misturar genes bons com “degenerados”, para eles, estragaria a linhagem. Para evitar isso, só mantendo a raça “pura” – e aí eles não estavam mais falando de ervilhas. O eugenista Madison Grant, do Museu Americano de História Natural, advertia em 1916: “O cruzamento entre um branco e um índio faz um índio, entre um branco e um negro faz um negro, entre um branco e um hindu faz um hindu, entre qualquer raça européia e um judeu faz um judeu”.
As ideias eugenistas fizeram sucesso entre as elites intelectuais de boa parte do Ocidente, inclusive as brasileiras. Mas houve um país em que elas se desenvolveram primeiro, e não foi a Alemanha: foram os EUA. Não tardou até que os eugenistas de lá começassem a querer transformar suas teorias em políticas públicas. “Em suas mentes, as futuras gerações dos geneticamente incapazes deveriam ser eliminadas”, diz o jornalista americano Edwin Black, autor de A Guerra contra os Fracos. A miscigenação deveria ser proibida.
Programas de engenharia humana começaram a surgir, inspirados por técnicas advindas de estábulos e galinheiros. O zoólogo Charles Davenport, líder do movimento nos EUA, acreditava que os humanos poderiam ser criados e castrados como trutas e cavalos. Instituições de prestígio, como a Fundação Rockefeller e o Instituto Carnegie, doaram fundos para as pesquisas, universidades de primeira linha, como Stanford, ministraram cursos. Os eugenistas americanos ergueram escritórios de registros de “incapazes”, criaram testes de QI para justificar seu encarceramento e conseguiram que 29 estados fizessem leis para esterilizá-los.
As primeiras vítimas foram pobres da Virgínia, e depois negros, judeus, mexicanos, europeus do sul, epiléticos e alcoólatras. Segundo Black, 60 mil pessoas foram esterilizadas à força nos EUA. Em seguida, países como a Suécia e a Finlândia começaram programas parecidos.
Portanto, quando a Alemanha de Hitler começou a esterilizar pessoas com deficiência física e mental, em 1934, não estava inventando nada. Só que eles foram mais longe. “Hitler está nos vencendo em nosso próprio jogo”, indignou-se o médico americano Joseph DeJarnette, que castrava pobres. Em 1939, os alemães começaram a matar pessoas com deficiência, em um programa de “eutanásia forçada”. Médicos usaram o gás inseticida Zyklon B para eliminar 70 mil pessoas “indignas de viver”. O programa foi suspenso após protestos, mas serviu de ensaio para os campos de concentração, onde Zyklon B exterminaria qualquer um que ameaçasse o projeto da raça pura e a consequente “melhora da humanidade”.
“Hitler conseguiu recrutar mais seguidores entre alemães equilibrados ao afirmar que a ciência estava a seu lado”, diz Black. “Seu vice, Rudolf Hess, dizia que o nacional-socialismo não era nada além de biologia aplicada.” Com o carimbo da ciência, ainda que meio falsificado, ficou mais fácil para gente como Julius compactuar com o absurdo nazista.
A 2ª ideia: um ódio ancestral
A eugenia forneceu a base teórica para o assassinato de ciganos, deficientes, homossexuais e outros “inferiores”. Mas por que só um povo foi marcado para o extermínio? Por que os judeus? Essa resposta é ainda mais antiga. “O primeiro antissemitismo foi o dos romanos, que não toleravam costumes judaicos como o shabat (dia do descanso) e o culto ao Deus único”, escreveu o historiador francês Gerald Messadié em História Geral do Antissemitismo.
Quando o Império Romano adotou o cristianismo, no século 4, a perseguição cultural e política virou religiosa. “Esquecendo-se de que Jesus foi judeu, os partidários da Igreja iriam, em nome de Jesus, cobrir os judeus de acusações”, diz Messadié. A maior delas veio em 325, quando a Igreja culpou os judeus pela morte de Cristo, uma acusação só retirada em 1965. A cristandade medieval viu crescer os mitos de que judeus eram aliados do diabo, utilizavam sangue de crianças cristãs e tramavam o domínio do mundo. Muitos judeus se converteram ao cristianismo para não terminar nas fogueiras da Inquisição.
Ou seja, também nesse aspecto, o nazismo não foi novidade, como deixa claro o livro Christian Antisemitism, A History of Hate (“Antissemitismo Cristão, Uma História de Ódio”, sem versão no Brasil), de William Nicholls, estudioso da religião da Universidade de British Columbia, Canadá. Nicholls mostra que muitas medidas antissemitas da lei canônica medieval são reencontradas quase palavra por palavra na jurisdição nazista dos anos 30. Tanto a obrigação do uso de uma insígnia nas roupas quanto as proibições aos cristãos de vender bens, casar ou fazer sexo com judeus já existiam em leis da Igreja do século 13. Mas o século 19 trouxe uma novidade. Antes, os judeus tinham uma saída, a conversão. Agora, com a eugenia, o antissemitismo deixou o caráter religioso e incorporou um novo conceito: a raça. A natureza dos judeus agora era imutável e nem a conversão os salvaria.
Com a vitória dos nazistas e a fundação do 3º Reich, em 1933, o antissemitismo pela primeira vez se tornou política de Estado, e a população, convencida pelos mitos medievais, não pareceu se incomodar. O historiador inglês Norman Cohn, da Universidade de Sussex, constatou isso ao ler interrogatórios de ex-membros das SS, as tropas de repressão nazistas. “O genocídio dos judeus foi motivado pela ideia de que eles eram conspiradores decididos a dominar a humanidade – uma versão secularizada da ideia de feiticeiros empregados por Satanás”, afirma Cohn no livro Conspiração Mundial dos Judeus: Mito ou Realidade?.
Daniel Goldhagen, professor de Estudos Sociais e Governamentais da Universidade Harvard, ampliou a pesquisa ao estudar pessoas como Julius, que participaram do assassinato de judeus. “Movidos pelo antissemitismo, os perpetradores acreditavam que acabar com os judeus era justo, correto e necessário.” Segundo ele, nenhum homem de Julius nem de qualquer outro batalhão foi morto ou mandado a campo de concentração por se recusar a matar judeus. Ou seja, tal ato não era considerado errado naquele lugar e naquela época. No discurso de alguns ideólogos nazistas, era uma medida sanitária. Quase como exterminar ratos.
3ª ideia: o amor à pátria
A eugenia emprestou a fachada científica e o antissemitismo forneceu a motivação, mas os nazistas não teriam feito tanto barulho sem uma 3ª ideia: o nacionalismo. Hitler seguiu as pegadas do primeiro-ministro prussiano Otto von Bismarck, que ajudou a inventar a identidade germânica e, com isso, unificou o então fragmentado país, em 1871, e fundou o 2º Reich. Assim, Bismarck venceu os franceses na Guerra Franco-Prussiana. Tinham se passado 12 anos da publicação de A Origem das Espécies e a Alemanha estava vitoriosa e cheia de entusiasmo. Aí o país se lançou ao imperialismo baseado no “darwinismo social”, declarando sua superioridade sobre os africanos e asiáticos e justificando assim seu direito de dominá-los.
Mas, nos anos 30, o clima era outro: a Alemanha estava deprimida. Perdera a 1ª Guerra e naufragava na desordem, na crise econômica e na desunião. Como Bismarck, Hitler fomentou o nacionalismo. “A utopia hitleriana se baseava em 3 erres: reich (império), raum (espaço) e rasse (raça)”, diz a alemã Marlis Steinert, historiadora do Instituto de Altos Estudos Internacionais de Genebra. Segundo ela, o sonho do reich remontava à lembrança mística de Frederico Barbarossa, senhor do Sacro Império Romano-Germânico, o 1º Reich, que começou por volta de 800 e durou 1000 anos.
Já as noções de espaço e raça vinham do século 19 e simbolizavam o vínculo entre a natureza, a terra e o homem, como cantavam os poetas do romantismo. Hitler queria expandir o território e dar à história alemã seu verdadeiro sentido, devolvendo ao povo seu espaço vital. Ele afirmava que traria de volta os tempos de grande potência e fundaria o 3º Reich. Não é à toa que a investida contra a União Soviética se chamou Operação Barbarossa.
A trilogia dos erres se encaixou na velha ideologia volkisch (“do povo”), arraigada na Alemanha antes da chegada do nazismo. Segundo ela, um povo só floresce se todas suas partes estão saudáveis. É aí que entra a interpretação nazista do socialismo. Afinal, você já deve ter se perguntado por que o partido de Hitler (o Nacional-Socialista) tinha socialismo no nome, se era absolutamente anti-comunista. “Para Hitler, o socialismo era a ciência da prosperidade coletiva e nada tinha a ver com marxismo”, afirma Marlis. O “socialismo” dos nazistas tinha esse nome porque supostamente colocava o coletivo (social) acima do indivíduo.
E qual era a principal ameaça a esse ideal nacionalista de um corpo saudável? Os judeus, por não terem um lar nacional. Aos olhos nazistas, eles formavam uma nação internacional e eram portanto mais perigosos que qualquer país estrangeiro, por corroer a Alemanha de dentro, como uma infecção. Em seus discursos, Hitler os acusava de desnacionalizar o Estado e alterar a pureza do sangue ariano para destruir o povo. Ele os chamava ora de comunistas, ora de capitalistas, mas sempre materialistas, em oposição ao idealismo germânico. “Para o pensamento hitlerista, ser socialista é também ser antissemita porque o socialismo se opõe ao materialismo e protege a nação”, diz Marlis.
Mais uma vez, gente como Julius tinha uma justificativa para matar. Na sua cabeça, era em nome da nação, do coletivo. E, para alguns, fica mais fácil tolerar a injustiça contra indivíduos quando se acredita que o objetivo final é o bem comum.
4ª ideia: a fria modernidade
“O Holocausto foi executado na sociedade moderna e racional, em nosso alto estágio de civilização e no auge do desenvolvimento cultural humano. Por isso, é um problema da nossa civilização e da nossa sociedade”, diz o sociólogo polonês Zygmunt Baumann, autor de Modernidade e Holocausto. Por isso é tão difícil falar abertamente sobre o assunto. O nazismo diz respeito a nós. Auschwitz é tão ocidental e moderno quanto a calça jeans. O Holocausto foi feito ao modo moderno: racional, planejado, “cientificamente” fundamentado, especializado, burocrático, eficiente.
Os genocidas obedeciam a rotinas de organização. Julius e seus homens fumavam entre os fuzilamentos, como um funcionário de escritório. Relaxavam, batiam papo e voltavam a disparar. Foi com uma solução moderna, os cartões perfurados das máquinas Hollerith da IBM, que os nazistas localizaram suas vítimas. A IBM não só forneceu máquinas, mas idealizou o sistema e prestou assessoria técnica para que tudo funcionasse nos conformes.
Quando os nazistas perceberam que tiros não seriam suficientes para eliminar os 11 milhões de judeus da Europa, recorreram a outra solução moderna, as câmaras de gás, inspiradas nas mais avançadas tecnologias de dedetização. Auschwitz era uma fábrica de matar – tinha capacidade para queimar 4756 corpos por dia, em 5 crematórios. Uma grande “inovação”, se comparada aos métodos usados pelos turcos contra os armênios em 1915: fuzilamento, golpes de clavas e baionetas.
A tecnologia moderna libertou o homem de séculos de domínio da natureza. Graças a ela o homem pela primeira vez acreditou que não era apenas uma “criatura de Deus”, a mercê de Seus desígnios, mas um sujeito capaz de moldar o mundo. Foi justamente o que os nazistas quiseram fazer: mudar a Terra, construir sua utopia. E pretendiam fazer isso do jeito moderno: sem questionamentos morais, em nome do “progresso”.
Ainda assim, não faltaram contradições no casamento entre o nazismo e a modernidade. Hitler usou as técnicas, mas combatia as ideias modernas. Era contra os valores de igualdade, liberdade e democracia emanados pela Revolução Francesa. E, como você vai ver a seguir, quis reinstaurar a Antiguidade grega em pleno século 20.
5ª ideia: a ilusão da beleza
Este último componente do nazismo é talvez o mais chocante. Por trás da tragédia do Holocausto e da morte de 50 milhões de pessoas, estava o sonho de criar um mundo mais puro, mais harmonioso – enfim, mais belo. “O nazismo também era estética”, diz o sueco Peter Cohen, diretor do documentário Arquitetura da Destruição. “Pregava que uma nova Alemanha surgiria, mais forte e bonita, num sonho ao qual só os artistas podiam dar forma.”
O 5º elemento do nazismo aflorou da personalidade de seus líderes. Joseph Goebbels, ministro da Propaganda, escrevia romances e peças teatrais e vários outros líderes nazistas eram artistas e escritores. Hitler pintava aquarelas. Com o amigo de infância August Kubizek, ele escreveu uma ópera seguindo uma ideia do compositor Richard Wagner, expoente do romantismo alemão e da escola volkisch. A trama se passa na Roma medieval e o protagonista é um tal Rienzi, um plebeu que tenta restabelecer a Antiguidade.
O führer parecia decidido a encarnar Rienzi na vida real. Seria ele o artista-príncipe que anunciaria a nova civilização clássica, inspirada na Grécia e em Roma. Tanto que o ditador era também diretor, cenógrafo e protagonista dos comícios nazistas. Ele mesmo desenhou as bandeiras, os estandartes, os uniformes e a temível insígnia da suástica. Quando a guerra começou, ele mandou artistas ao front para pintar as glórias do exército e ordenou a confecção de esculturas gigantescas inspiradas no ideal grego de beleza. Uma dessas esculturas era dele próprio e seria colocada no centro de Berlim, planejada para ser a cidade mais grandiosa do mundo, capital da futura civilização. Hitler tinha uma ideia peculiar sobre arte. Assim como os arianos eram a raça pura, os clássicos eram a arte pura. E a arte moderna seria a equivalente dos judeus (e das ervilhas enrugadas): degenerada. As fileiras nazistas estavam cheias de artistas, mas a classe profissional mais numerosa no partido era a dos médicos. Tanto uns como outros tinham um sonho em comum: uma sociedade mais “harmônica” e, consequentemente, mais “saudável”.
Na vida real, Hitler só encenou o 1º ato de sua ópera. Projetou sua megalômana Berlim e desenhou os esboços de prédios monumentais para várias cidades alemãs. A morte de todos os judeus faria parte desse projeto estético de um mundo mais harmonioso. Felizmente, não deu tempo de terminar nem as obras nem o extermínio. Em 1941 ele percebeu que não venceria. Quanto mais perto da derrota, mais intensificava o genocídio – convencido de que o esforço valeria a pena se pudesse deixar para a posteridade um mundo sem judeus. Apesar da necessidade de logística na guerra, os trens davam prioridade ao transporte de prisioneiros para os campos. “Para Hitler a perda da guerra não significava o fim do nazismo, pois a queda do 3º Reich influenciaria as futuras gerações”, diz Cohen. “O país se reergueria das ruínas. Da derrota total, brotaria uma nova semente.”
Sobrou uma semente?
O sonho de Hitler, felizmente, não se realizou. O nazismo deixou de existir como alternativa política no momento em que a 2ª Guerra Mundial acabou. Mas será que ele pode voltar?
Edwin Black diz que a eugenia também está viva e continua definindo o valor do indivíduo com base no seu valor genético. A diferença é que os eugenistas de hoje não se guiam por bandeiras e sim por dinheiro. De posse de banco de dados com identidades de DNA, agências de emprego e companhias de seguro estão negando serviço a pessoas que têm doenças degenerativas. “Assistimos à aparição de uma subclasse discriminada por sua linhagem ancestral”, afirma. “O Parlamento inglês chamou esse fenômeno de gueto genético.”
Os genocídios tampouco deixaram de existir após o Holocausto. Nos últimos anos, assistimos à morte de 100 mil curdos no Iraque, 200 mil bósnios na ex-Iugoslávia e 800 mil tutsis em Ruanda. Para o escritor israelense Amos Oz, autor de Contra o Fanatismo, ideologias que pregam a superioridade de uns sobre os outros nunca fizeram tanto a cabeça dos jovens. “Quanto mais complicada a vida se torna, mais buscamos respostas simples. E essas respostas às vezes são fanáticas”, diz ele.
O nazismo pode até ter morrido. Mas os seus 5 pilares, as 5 ideias que deram origem a ele, sobreviveram à guerra e aos 60 anos depois dela. O carimbo de “aprovado pela ciência” continua sendo distribuído a esmo, e dando aval a projetos imorais. O racismo e a noção de que os homens são desiguais continuam a ser forças que movem multidões, e o nacionalismo exacerbado anda quase sempre ao lado deles. A “busca do progresso” e a modernidade continuam sendo argumentos invencíveis, que quase sempre dispensam a ética em nome da eficácia (ou, cada vez mais, do lucro). E as utopias continuam convencendo o homem a desprezar o indivíduo em nome do “moderno”, do “belo” ou do “sonho”. Pelo menos já sabemos no que essa mistura pode dar. É melhor não esquecer.