“Era um negócio maluco a oferta de emprego. Tinha Kombi que circulava entre a Volkswagen, a Mercedes, a Ford. E o peão ficava sabendo: ‘Olha, a Ford tá pagando tanto’. O cara ia na empresa, pedia a conta e ia para a Ford”, disse o ex-presidente Lula ao historiador Ronald Costa Couto. “Se houvesse eleições livres e diretas, Médici ganhava de lavada. Teria uns 70% dos votos.”
Era difícil discordar à época. Durante o “milagre econômico” (1968-1973), o Brasil cresceu 11% ao ano e virou a décima economia do mundo. Os salários eram comprimidos, mas a renda familiar crescia conforme fábricas e serviços contratavam jovens e mulheres. E, com crédito abundante e fácil, a classe média foi às compras. O número de aparelhos de televisão subiu de 1,66 milhão, em 1964, para 8,7 milhões em 1974, e o gasto com viagem ao exterior decuplicou.
Quando uma economia cresce rapidamente puxada pela demanda, costuma haver dois efeitos colaterais: inflação (a oferta não dá conta) e desequilíbrio nas contas externas (as importações crescem muito). Naqueles seis anos, aconteceu o contrário. A inflação caiu de 25,5% para 15,6%, e o superávit do balanço de pagamentos subiu de US$ 97 milhões para US$ 2,38 bilhões, em valores da época. Ou seja, um milagre.
Mas esses seis anos foram só um capítulo da ditadura. Antes, vieram três anos de aperto com Castelo. Depois, cinco anos de marcha forçada de Geisel e seis anos de catástrofe de Figueiredo. Os militares pegaram um país na bancarrota e entregaram outro país na bancarrota.
Cintos apertados
Uma das razões para civis apoiarem o golpe de 1964 foi uma crise econômica que se estendia desde os estertores do governo JK. Com o fim dos “50 anos em 5”, a economia parou. A indústria retraiu em 1963, a inflação atingiu 91,8% em 1964, e Jango não tinha força política para fazer ajustes. Então os militares entraram prometendo arrumar a economia.
Isso significava malvadezas no curto prazo. No diagnóstico dos liberais Roberto Campos (Planejamento) e Octávio Bulhões (Fazenda), a inflação era resultado de um governo que arrecadava pouco e gastava muito. Desfalcado, ele ligava as impressoras de dinheiro, mas o excesso de moeda aumentava o nível geral dos preços. Para resolver o déficit público, a equipe econômica fez uma reforma tributária – daí vieram o IPI, o ICM (hoje ICMS) e o ISS. A carga tributária subiu de 16% para 21% do PIB, entre 1963 e 1967. Também elevou os juros e passou a ajustar os salários sempre abaixo da inflação.
Quando Costa e Silva assumiu a presidência e pôs Delfim Netto na Fazenda (1967-1974), a casa já estava em ordem. A inflação tinha caído de 86%, em 1964, para 24%, em 1967 e o déficit público estava sob controle. O problema, agora, era legitimar o governo militar. A população sofria com o ajuste econômico e começava a manifestar-se contra casos de repressão. Já a linha dura pressionava Costa e Silva para fechar ainda mais a a ditadura. Era necessário um milagre para sustentar o regime. E Delfim o fez.
Milagreiro
Aproveitando a economia em boas condições, Delfim retomou os investimentos públicos em infraestrutura. Também aumentou a demanda por bens duráveis e por habitações, abrindo as porteiras do crédito ao consumidor. Entre 1968 e 1973, o crédito cresceu 17% ao ano, contra 5% no governo Castelo, e o endividamento familiar, 23,6%.
A aposta era puxar o crescimento pela demanda. Como vimos, isso pode aumentar a inflação e o desequilíbrio das contas externas. Mas não foi o que aconteceu. Para que a oferta desse conta da demanda e a inflação não crescesse, era necessário aumentar as importações. Para isso, tinha que arranjar dólares, exportando ou captando recursos no exterior. Felizmente, a economia mundial ajudou o Brasil nas duas frentes. A alta das commodities e a diversificação da economia brasileira ajudaram a quase triplicar nossas exportações. Ao mesmo tempo, os juros internacionais estavam baixíssimos, o que ajudou a pegar emprestado a rodo. De repente, o Brasil era o Japão da América Latina.
Ouro de tolo
Sob Médici (1969-1974), o Brasil viveu ao mesmo tempo seus anos de chumbo e de ouro. Mas os problemas não demorariam a aparecer. Trabalhadores de baixa qualificação permaneceram com os salários comprimidos por uma fórmula malvada que indexava os salários a uma previsão de inflação, sempre subestimada. Já os trabalhadores qualificados foram agraciados pela lei de mercado: com muitas vagas e poucos profissionais, o salário só aumentava. O bolo cresceu, mas não foi repartido.
Outro problema foi a ênfase ao consumo de bens duráveis, que dobrou no período. A classe média conseguiu comprar seus Fuscas, Corcéis e Opalas, suas geladeiras Brastemp e televisões Philco. Ótimo, pois isso impulsionou a indústria desses bens. A de transporte cresceu, em média, 24% ao ano, e a de eletrodomésticos, 22%. Mas isso aumentou a demanda por bens intermediários, como chapas de aço e derivados de petróleo, e a produção desses era pequena no País. Assim, a economia brasileira passou a depender da sua capacidade de importar esses bens.
A maior vulnerabilidade do Brasil estava no petróleo, que ocupava 40% da matriz energética. No milagre, a fatia importada subiu de 59% para 81%. Isso não foi um problema enquanto o barril oscilou entre US$ 1,80 e US$ 3,29. Até que, em outubro de 1973, a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) elevou para US$ 11,65. Com isso, o Brasil perdeu a capacidade de importar – e, consequentemente, de produzir. Assim acabou o milagre.
O choque
A conta do petróleo tinha que ir para algum lugar. Se o aumento fosse repassado internamente, ele se espalharia por toda a economia, dos fretes aos fertilizantes no campo. Isso mais do que dobraria a estimativa de inflação para o ano. Para evitar um aumento tão drástico, Delfim Netto passou a importar combustível com as reservas monetárias do País – o equivalente a queimar as roupas para se aquecer no inverno.
Era necessária uma solução de verdade. Economias mais sensatas absorveram o choque pisando no freio. Foi o que os EUA, as potências europeias e o Japão fizeram. Forçaram um ajuste recessivo, que conteve a demanda interna e limitou o efeito do choque sobre a inflação e sobre as contas externas. Mas, no Brasil, o freio significava o fim do milagre, base legitimadora da ditadura.
Geisel assumiu a presidência numa posição incômoda. A piora na economia fortalecia tanto a pressão da sociedade pela abertura política quanto a da direita militar, que queria permanecer no poder. Sanduichado entre abrir e fechar, Geisel decidiu fugir do dilema apertando o acelerador. Então, criou um pacotão de investimentos na indústria de bens de produção – o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento (2º PND).
Entre 1974 e 1979, o setor metalúrgico cresceu 45%, o de material elétrico, 49%, o de celulose, 50%, o químico, 48%. E os projetos megalomaníacos se sucediam: usina de Itaipu, Projeto Carajás, prospecção na Bacia de Santos, usina de Angra, polo petroquímico de Camaçari, Pró-Álcool… Com o 2º PND, imaginava Geisel, o Brasil conquistaria a independência em energia e bens de produção.
Só que o Brasil não tinha dinheiro para tanto. A solução foram os “petrodólares”. Funcionou assim. Depois de aumentar o preço do barril, os países Opep foram inundados de dólares. Parte das receitas foi consumida; outra parte voltou para o mercado financeiro. Como os bancos de países industrializados impunham tetos aos juros, os dólares de sauditas e cia seguiram para os países emergentes – mais arriscados e, por isso, mais lucrativos. E nenhum cliente tinha uma fome de petrodólares maior que o Brasil do 2º PND. De 1974 a 1979, o País aumentou sua dívida externa de US$ 17 bilhões para US$ 50 bilhões.
A saída pela frente de Geisel era um lance arriscadíssimo. Para dar certo, o financiamento externo precisaria permanecer abundante e barato até que os investimentos maturassem. Só que o 2º PND era um plano de longo prazo. Itaipu foi inaugurada em 1984, uma década depois de iniciadas as obras. Já Angra 2 iniciou as operações comerciais em 2001. Bem antes disso, a Opep promoveu um novo choque no petróleo, em 1979, de US$ 13,60 para US$ 30.
Para conter os efeitos inflacionários, os bancos centrais dos países ricos elevaram suas taxas de juros. Ronald Reagan aumentou a prime rate de 7,9% ao ano para 16,4% em 1981, o que fez dos EUA o maior aspirador de dólares do planeta. Em 1982, o México declarou moratória. Agora, ninguém queria mais deixar o dinheiro no Terceiro Mundo. Nisso, o Brasil tinha que pagar juros cada vez maiores para rolar seus débitos. E a nossa dívida externa acelerou até chegar às alturas.
Quando a ditadura terminou, em 1985, o PIB mal conseguiu recuperar o nível de 1980. O Brasil acumulava uma dívida externa de US$ 105 bilhões, 30 vezes maior do que a de 21 anos atrás. A inflação de 239% ao ano fazia os 91,8% de Jango parecerem um problema menor. O salário mínimo havia caído pela metade, e quase 50% da população permanecia abaixo da linha de pobreza. Do milagre econômico, os militares deixaram para os civis uma maldição inflacionária que só se resolveria em 1994, com o Plano Real.
Quem quer dinheiro?
A ditadura não conseguiu acabar com a inflação. Ela deixou as sementes da Hiperinflação
A inflação do cruzeiro, moeda criada em 1942, foi pondo zeros à direita dos preços até o número mil virar a nova unidade monetária – uma geladeira Clímax, por exemplo, saía por Cr$ 650 mil em 1966. Para facilitar as contas, o Banco Central carimbou todas as cédulas. Agora, chamavam-se cruzeiros novos e tinham três zeros a menos.
Em 1970, a moeda voltou a se chamar cruzeiro e ganhou novo desenho. Só que a inflação continuou. Em 1985, no fim da ditadura, a geladeira atingiu os Cr$ 650 mil, de novo. Passado mais um ano, Sarney cortou mais três zeros.
Fonte: https://super.abril.com.br/especiais/21-mitos-sobre-a-ditadura-militar/