Nascido em 1330 em Scampston, atualmente uma vila de 300 habitantes em North Yorkshire, Latimer foi para a França participar da Guerra dos Cem Anos, o grande conflito entre ingleses e franceses do qual brotaram Joana D’Arc e a centenária rixa entre os dois países. Aos 16, ele participou da Batalha de Crécy, uma das grandes vitórias inglesas no início da guerra. Depois, trabalhou em Calais, cidade portuária francesa atualmente mais lembrada pela “selva” de refugiados amontoados em acampamentos improvisados até 2016 do que pelo período em que foi dominada pelos monarcas ingleses — como consequência da batalha em que nosso amigo marcou presença.
Latimer virou cavaleiro, serviu na Gasconha, lutou na Batalha de Auray (1364) e voltou à Inglaterra para iniciar sua ascensão política. Agora quarto barão Latimer, ele teve altos cargos na Royal Household, organização de suporte à família real em atividades oficiais. De quebra, conseguiu levar o genro, John Neville, o terceiro barão Neville de Raby, na mesma bocada. Nepotismo nunca é demais, não é mesmo?
Ao longo da década de 1370, o barão era tido em alta conta na corte do rei, Eduardo III. A pretensão do monarca ao trono francês, além dos interesses comerciais na lã de Flandres (na atual Bélgica), território que na época pertencia aos franceses, foram o estopim da guerra, três décadas antes.
Latimer era querido, em particular, por outro duque, o de Lancaster, que tinha a providencial vantagem de ser filho de Eduardo III. Não o herdeiro do trono, mas o terceiro que chegou à idade adulta (ou seja, sem a pressão de se preparar para o trono, mas com todas as vantagens de ser, bem, filho do rei). João de Gante, como ficou conhecido depois de virar personagem da peça Ricardo II, de Shakespeare, foi um dos homens mais ricos de seu tempo. Nascido em Gent (ou Gante), em Flandres, João também era veterano da guerra — convenhamos, quando se vive na época de uma guerra de 116 anos, devia ser difícil alguém não ter alguma ligação com ela. Ele teve grande influência no reinado do pai e no do sobrinho, Ricardo II, que assumiu o trono aos 10 anos (e, justamente por isso, acabou inspirando Shakespeare).
João pode nunca ter tido o poder, porém cercou-se dele por toda a vida. Casou-se com Constança de Castela, e usou isso para tentar tomar o trono ibérico. Fracassou, mas casou sua filha com o nobre que se tornaria rei de Castela e Leão. Também se meteu em rixas reais entre portugueses e espanhóis e, de volta à Inglaterra, acabou se tornando ancestral direto dos homens que reinaram o país entre 1399 e 1471, os Henriques IV, V e VI (e também de reis portugueses e espanhóis nas gerações vindouras).
Foi com esse poderoso fazedor de monarcas que o barão Latimer se meteu. Antes um servidor dedicado à coroa, o barão agora passava tempo demais com João e o resto da turma, numa mistura de Onze Homens e Um Segredo com Robin Hood, sem a parte honrada da história.
Além de seu estimado genro, o barão Neville de Raby, havia um comerciante chamado Richard Lyons, sujeito com uma influência, digamos, meio a par das leis, meio aeciana, nas ruas de Londres. Entre tantos toma-lá-dá-cá, “tem que manter isso aí” e “tamo juntos”, ele chegou a ser eleito xerife da capital. Por fim, temos a amante do rei, Alice Perrers, dona de dezenas de propriedades ao redor do país, uma negociante astuta que usou as mínimas funções sociais permitidas a mulheres da época (como ser amante) a seu favor: em vez de apenas usufruir os mimos e torrar a grana que ganhava, transformava isso em renda. E gostava de ouro. Reza a lenda que ela teria surrupiado o anel do monarca de sua mão morta antes mesmo de o cadáver esfriar.
Resumo da ópera do malandro: o reinado de Eduardo III foi uma beleza no começo, com vitórias sobre os franceses, um vistoso desenvolvimento militar e político, com um Parlamento em evolução e instituições mais respeitadas. Mas, no fim de seus 50 anos de trono, a corte estava podre, naufragada em corrupção – boa parte dela praticada pela turma do barão .
Em 1376, o Parlamento precisou tomar uma iniciativa. Latimer, Neville, Lyons e Perrers foram julgados. Ela foi banida do reino e perdeu suas propriedades. Latimer e Lyons conseguiram o nada honrado feito de serem os primeiros homens a sofrerem impeachment na história do país. Lyons foi destituído dos cargos que ocupava na Casa da Moeda e no Conselho Real, e se mudou para a prisão da Torre de Londres.
Latimer também foi preso e perdeu títulos e cargos. Acabou condenado por opressão ao povo, venda de um castelo para o inimigo, liberação de embarcações inimigas capturadas em troca de propina, desvio de dinheiro público recolhido em multas e por ludibriar a Coroa, em conluio com Lyons, a pagar empréstimos que jamais foram tomados.
A sensação de justiça foi tão plena que a câmara, naquele ano, ficou conhecida como o Bom Parlamento. Naquele mês de maio, a sociedade sorria, satisfeita, com o fim da corrupção.
Mas não durou muito. Seis meses depois, Latimer foi perdoado. No ano seguinte, o rei morreu e João de Gante usou sua influência. Conseguiu liberar Lyons, que já em 1380 foi eleito para o mesmo Parlamento que o condenara três anos antes. Latimer também se safou: voltou a Calais, agora como governador.
Fim.
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PS.: Em 1381, na Revolta Camponesa de Londres, Lyons foi decapitado. Sua cabeça foi carregada e exibida pela cidade em um poste.
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