Por Felipe van Deursen*
ATENÇÃO: algumas imagens que ilustram esse post podem ser chocantes.
“Ocultar ou negar o mal é como permitir que uma ferida siga sangrando sem enfaixá-la.”
Foi com essa declaração que o papa Francisco lembrou, em uma missa no Vaticano, o centenário do genocídio armênio, um dos primeiros e mais brutais massacres do século 20. Na ocasião, o pontífice peitou o governo turco, que não aceita o termo “genocídio” e que questiona até hoje o número de mortos na ocasião. O assunto é tão polêmico no país que gerações de turcos jamais tomaram conhecimento dele.
A Armênia foi o primeiro país a oficializar o cristianismo, em 301. Desde então, esse pequeno país no Cáucaso foi repartido entre as potências locais da vez: Árabe e Bizantino, Otomano e Persa e Russo e Otomano. Sob os otomanos, eles eram importantes e respeitados na sociedade. Mas à medida que o Sol se punha em Istambul, viravam bode expiatório para o fracasso do regime do sultão. Entre 1894 e 1896, os turcos mataram algo entre 150 mil e 300 mil armênios. Em 1903, uma revolta na Macedônia resultou na morte de 5 mil gregos (mais tarde, na guerra contra a Grécia, de 1919 a 23, outros 200 mil gregos foram trucidados). A decadência turco-Otomana no fim do século 19 fomentou sentimentos xenófobos. Estava cada vez mais difícil ser armênio naquele império. Sentimentos emancipacionistas cresceram de um lado, e a repressão e o ódio afloraram do outro.
A situação piorou quando os turcos viram que, durante a Primeira Guerra Mundial, os armênios comemoraram as derrotas para os russos nas montanhas do Cáucaso (quem não comemoraria?). Uma Turquia enfraquecida significava mais fôlego para o discurso de independência armênia.
PROJETO CAOS
Em março de 1915, Mehmet Talât, Ismail Enver e Ahmed Jemal, líderes do partido Ittihad, que governava a Turquia, decidiram resolver de uma vez o “problema armênio”. O assunto foi tratado como um programa de governo, com preparativos, apresentações e propostas consideradas para um objetivo final: solucionar uma “questão vital para o Estado”. Após “longas discussões”, eles lançaram o plano, que incluía extermínio (“todos os homens com menos de 50 anos”, entre outros), expulsão (“levar embora famílias e todos aqueles que foram bem-sucedidos em fugir”) e transformação (“meninas e crianças para serem islamizadas”).
O discurso era inequívoco, com três argumentos sólidos: a necessidade de uma Turquia para os turcos, uma Turquia islâmica e o retorno daquela Turquia de raiz. Só assim sua grandeza e glória seriam restabelecidas. Sob o regime otomano, os turcos toleravam os armênios, enquanto se mantivessem fiéis ao Estado. Mas, com o declínio do império e a perda de território para outros países e minorias não turcas, eles passaram a enxergar tudo através das lentes estridentes do nacionalismo agressivo. Os armênios, de uma hora para outra, tornaram-se um grupo hostil e ameaçador.
Para executar com maestria o plano de eliminação, os líderes turcos criaram a Teşkilât-ı Mahsusa (se você não é fluente em turco, significa “Organização Especial”). Clichê de política de extermínio detectado: instituição autônoma que, com sua estrutura própria, funcionava virtualmente como um estado dentro do Estado. Mais ou menos como os esquadrões da morte das ditaduras latinoamericanas.
Talât manipulou facilmente os preconceitos e pensamentos anti-armênios já existentes entre muitos turcos. Em 24 de abril de 1915, um Sábado de Aleluia, a polícia otomana prendeu 600 intelectuais, políticos e religiosos armênios, acusados de conspiração, e os executou. O horror começou.
Homens em idade de batalha foram convocados para o front. Só que com uma pegadinha: não podiam pegar em armas. Em vez disso, cavavam trincheiras e eram fuzilados. Em junho, 15 mil armênios que moravam na cidade de Bitlis foram conduzidos ao campo e mortos. Em julho, em Trebizonda, 17 mil armênios tiveram o mesmo fim. Em seguida, soldados turcos investigaram os vilarejos armênios e assírios, outra minoria cristã, que vivia ao sul do território. Fuzilavam os homens que não haviam ido para a guerra. Uns, queimavam vivos. Outros, enterravam até o pescoço para depois cobrir o rosto com cal ou sal. Crianças eram encaixotadas e atiradas no Mar Negro. Padres, amarrados a cruzes e também queimados. Fetos, arrancados do ventre da mãe, jogados ao ar e aparados pela espada.
Depois piorava. Forçaram mulheres, velhos e crianças que sobreviviam a migrar para o deserto de Der-el-Zor, na atual Síria. Clichê de política de extermínio detectado: a marcha da morte. Aconteceu na Rússia, na Namíbia e na Alemanha, por exemplo.
O embaixador americano Henry Morgenthau apelou para o argumento econômico a fim de deter a Organização Especial e Talât. “Se você não for levar em conta considerações humanas, pense nas perdas materiais. Essas pessoas são seus homens de negócios. Controlam muitas de suas indústrias. São grandes pagadores de impostos. O que você será comercialmente sem eles?”, argumentou. Talât disse que já haviam calculado. “Não damos a mínima para a perda comercial”, respondeu. Realmente não davam. Cerca de 60% da atividade econômica do Império Turco-Otomano era controlada pelos armênios.
A VOZ DO HORROR
Talvez você pense: “mas andar não é tão ruim quanto, sei lá, ser atirado ao fogo ou colocado em uma câmara de gás”. Tente não pensar em andarilhos, romeiros, exploradores e esportistas em geral. Não há estradas asfaltadas, squeezes com água gelada, tênis coloridos confortáveis. Muito menos carros de apoio e paradinha para descansar. Em vez disso, o combo era fome, frio e exaustão. E as marchas ganhavam tons mais dramáticos quando se explorava um território que oferece um insalubre bufê de desertos e montanhas excruciantes. Os turcos forçaram as pessoas que sobraram a vagar por meses, descalços, com pouca comida, sem abrigo, frequentemente sem um único lençol à noite. Armênios moribundos povoavam os acostamentos das estradas. Segundo uma testemunha:
“Vimos um monte de armênios que chegaram bem antes de nós, e eles haviam se tornado esqueletos. Fomos cercados pelos esqueletos de tal maneira que parecia que estávamos no inferno. Estavam todos com fome e sede, buscavam rostos familiares para pedir ajuda. Ficamos terrivelmente desencorajados, tão sem esperança que é difícil descrever como nos sentimos.”
Não bastavam a fome, o frio e a exaustão. Ao longo do caminho, os soldados turcos ainda baleavam, baionetavam e espancavam as pessoas com maças e porretes. De acordo com um sobrevivente:
“Pediram que todos os homens e meninos se separassem das mulheres (…) Meu pai tinha que ir. Ele era um homem crescido, de bigode. Assim que separaram, um grupo de armados chegou do outro lado da colina e matou os homens bem na frente dos nossos olhos. Mataram com baionetas, furando seus estômagos. Muitas mulheres não aguentavam, e eles as atiravam no rio Eufrates. Fizeram essa matança na nossa frente. Eu vi meu pai ser morto.”
Uma testemunha que viu uma caravana da marcha da morte disse que “por cinco dias, os armênios não receberam um pedaço de pão nem uma gota d’água. Morreram de sede, centenas e centenas caindo ao longo da estrada, suas línguas transformadas em carvão. No 75º dia, quando chegaram em Alepo, 150 mulheres e crianças sobreviveram de um grupo de 18 mil.”
Alepo, na Síria, serviu de porta de escoamento de armênios há cem anos. Ao final da marcha, os turcos chacinaram, talvez, 200 mil dos que teimavam em estar vivos. De acordo com registros divulgados em 2009, 972 mil armênio-otomanos morreram em dois anos. A maior parte dos relatos fala em algo entre 1 e 1,5 milhão de mortos. Muitos foram expulsos. Entre 100 mil e 200 mil mulheres e crianças foram escravizadas ou forçadas a se converter. Nessa etapa, outro padrão do extermínio em massa se manifestou, o estupro em massa:
“Todas as mulheres velhas ou fracas que não podiam andar eram mortas. Havia cerca de cem guardas curdos sobre nós, e nossas vidas dependiam deles. Era muito comum estuprarem as garotas na nossa presença. Frequentemente, eles violavam meninas de oito, dez anos, e, como consequência, muitas não podiam andar, então eram mortas (…) Se um curdo desejasse uma garota, nada poderia detê-lo de pegar essa garota.”
Boa parte do massacre foi perpetrada pelos curdos, etnia que também entraria na mira turca anos depois (talvez 30 mil eliminados nas décadas de 1980 e 90). Após o massacre, sobreviventes fugiram, dando início a uma diáspora que se espalhou pelo mundo. No Brasil, a comunidade armênia tem 100 mil pessoas e uma estação de metrô, na Zona Norte de São Paulo, região onde eles se concentraram. É a estação Armênia, que até 1987 se chamava Ponte Pequena e mudou de nome para homenagear os imigrantes das redondezas – ou seja, se você se confunde com a estação Consolação, que fica na av. Paulista, e a estação Paulista, que fica na Consolação, lembre-se que o metrô já mudou os nomes das estações para facilitar a vida das pessoas. Sua crítica tem respaldo.
Os atores Stepan Nercessian e Aracy Balabanian são filhos de imigrantes armênios que escaparam do genocídio. Sim, a Dona Armênia é fruto do massacre de um século atrás.
Ao lado da estação Armênia, um monumento relembra 1915 e homenageia seus mortos. Mas o Brasil, assim como a maior parte dos países do mundo, não reconhece formalmente o massacre como um genocídio. A Turquia só recentemente voltou a tocar no assunto. O atual governo o reconhece como algo “desumano”. Na época, Tâlat o considerou um grande feito. “Eu tive mais sucesso em resolver o problema armênio em três meses do que o [sultão] Abdul-Hamid II teve em 30 anos”, disse a amigos.
Quando a guerra acabou, o império já havia conseguido resolver a maior parte do “problema armênio”. Houve alguns outros ataques posteriores, mas o feito foi rapidamente esquecido pela comunidade internacional. Apesar de derrotada na guerra e reduzida a uma república sem o poder global de antes, a Turquia ainda seria um país muito mais influente que a Armênia. Ao longo do século passado, o episódio foi escondido, esquecido. Quando Adolf Hitler ordernou o massacre de poloneses em nome do Lebensraum, a política de expansão territorialista nazista para adquirir “espaço habitável”, ele comentou: “Quem, afinal de contas, fala hoje da aniquilação dos armênios?”.
OUÇA
Serj Tankian, vocalista do System of Down, banda formada por descendentes de imigrantes armênios, divulgou na semana passada “100 Years”, música composta por ele e John Psathas, compositor de origem grega, para relembrar o genocídio:
* Felipe van Deursen, jornalista, é ex-editor da SUPER. Esse texto é um trecho inédito do livro Ira – Os Sete Pecados, que será lançado em 2015 pela Editora Leya
Fontes- Worse Than War: Genocide, Eliminationism, and the Ongoing Assault on Humanity, de Daniel Goldhagen – Massacre de Armênios e Memórias de Naim Bey para Aram Adonian, de Nubar Kerimian – O Grande Livro Das Coisas Horríveis – A Crônica Definitiva da História Das 100 Piores Atrocidades, de Matthew White
– Metrô de São Paulo
– Consulado da Armênia em São Paulo
– “Genocídio armênio”, Aventuras na História, julho de 2005
– Metrô de São Paulo
– Consulado da Armênia em São Paulo
– “Genocídio armênio”, Aventuras na História, julho de 2005
http://super.abril.com.br/blogs/cultura/saiba-como-foi-o-genocidio-armenio-que-completa-100-anos-em-2015/
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